Pedro Haase Filho
SANTA MARIA/RS
Em meados do século 19, um mistério rondava as estâncias de Banhados, lá pelos cantos do segundo distrito de Santa Maria da Boca do Monte, na região central do Rio Grande do Sul. Na calada da noite, quando todos estavam dormindo, coisas desapareciam ... e apareciam também. Desapareciam facas, apareciam esteiras. Sumiram ferramentas, surgiram vasos. Perdia-se uma manta de charque, ganhava-se um balaio artesanal. Não havia que conseguisse explicar o caso.
Numa coisa todos concordavam: não era obra de um ladrão. O responsável por aquilo não estava roubando, estava trocando alguns itens por outros. Procura dali, procura daqui, ninguém conseguia descobrir quem passava as noites de casa em casa fazendo escambos. Na falta de uma solução lógica para o fato, todos passaram a tecer suas próprias teorias.
_ O demônio está por trás disso!
_ Magia negra!
_ Feitiçaria!
_ Isso é coisa desses escravos pagãos!
Consta que os escravos nada diziam, talvez porque soubessem da verdade.
Ninguém queria aceitar os “presentes” que o estranho visitante deixava. O povo, muito supersticioso, temia que tivesse algo a ver com o capeta. Se livraram de tudo sem nem usar: tocavam fogo, jogavam no rio, no meio do mato, enterravam bem fundo ... Não se tocava no assunto, fazendo de conta que nada estava acontecendo.
O tempo foi passando, e depois de muitas trocas noturnas as pessoas acabaram perdendo o medo sobrenatural dos objetos. Até pelo contrário, estimulavam o fenômeno. Alguns passaram a deixar na frente de casa tesouras, roupas velhas, cordas, tudo o que se imaginava ter alguma utilidade e que com sorte seria substituído por um vaso, um balaio ou uma esteira, que além de não causarem mal nenhum eram bem bonitos.
E assim as coisas se ajeitaram. Por incrível que pareça, ninguém mais se espantava com os desaparecimentos e aparecimentos repentinos, tão comuns quanto chuva, geada e ventania. Simplesmente aconteciam.
Muito tempo depois é que foi se descobrir quem por trás de tudo. Certa vez, um grupo de escravos caminhava pelo mato ao redor de Banhados, um pouco distantes da estância. Estavam metidos no meio da mata virgem, naqueles tempos bem abundante no Pampa, quando viram algo que lhes chamou a atenção. Do meio das árvores, onde pelo que se sabia não morava ninguém, podia-se ver uma fumaça branca subindo em direção ao céu. Quem poderia estar ali com eles? Um cambiola, como eram chamados os escravos fujões, talvez. Ou algum explorador mais afobado que, perdido, acendeu uma fogueira para se esquentar. Resolveram seguir em direção à fumaça, mas nada os havia preparado para o que iriam encontrar.
Santa Maria – Estação Estrada de Ferro – 1910
Armados e avançando de pé em pé, os escravos avistaram de longe um vulto enorme, sentado próximo ao fogo, preparando alguma carne para comer. Foram todos juntos para cima do ser, que percebendo o ataque avançou contra eles. Foi preciso a força de todos os captores para conter o desconhecido.
Tratava-se de um negro enorme, já velho, forte e muito bravo. Fedia, coberto de limo, lama, folhas e terras, seu aspecto indicava claramente que ele havia passado muito tempo longe da civilização. Vestia um colete de couro de quati, costurado do lado com cipós, e cobrindo-lhe as partes um tipo de tanga da pele do mesmo bicho.
Depois de muito tempo, o negro foi vencido, dominado, amarrado e levado para a estância de onde vinham os escravos. Nada foi esclarecido, pois o estranho ermitão não falava uma palavra de português. Depois de algumas horas – e provavelmente depois de alguns banhos – o homem ganhou um apelido e u grupo de inquisidores.
Por causa das roupas que usava no momento da captura, foi chamado de Pai Quati. Para desvendar o seu mistério, alguns escravos nascidos na África foram levados à presença do vivente, na esperança de se estabelecer algum diálogo. Um angolano, um sudanês e um banto depois. Nada se falaram. O bicho-do-mato finalmente se entendeu com um escravo vindo de Moçambique, onde ele também havia nascido.
Da conversa saiu o esclarecimento para o caso dos achados e perdidos que havia anos inquietava as redondezas.
Pai Quati fora trazido desde o Continente Negro para as bandas de Rio Pardo, onde seria vendido em leilão junto com outros de sua tribo. Conseguiu fugir e, sem saber muito para onde ir, passou dias vagando pelos campos, rios e matas, até se estabelecer no matagal perto de Banhados. Tentou se estabelecer sozinho, longe de tudo e de todos, mas a comida se mostrou pouca e a vida muito dura.
Sabia que ao se revelar para o mundo seria capturado e vendido novamente e isso ele não queria de jeito nenhum. Como também não queria roubar de ninguém, inventou esse sistema de trocas que por tanto tempo tinha instigado a imaginação e a curiosidade da cidade. Não era o diabo, era ele quem, como um sorrateiro e astuto quati, pegava os utensílios de que precisava, as carnes que a caça não dava e o que mais achasse útil, e em troca deixava seus enfeites, cerâmicas e obras de artesanato. Quando era livre em sua terra, era disso que vivia. Agora que havia conquistado a liberdade novamente, nada mais justo do que viver disso também.
E livre ele continuou. Livre e agora muito conhecido. Todos queriam conhecer apertar a mão, nem que fosse só dar uma olhada no homem que havia vivido tanto tempo no mato e que fazia as coisas aparecerem e desparecerem.
Pai Quati passou o resto de seus dias trabalhando como peão em várias estâncias, mas logo se cansava da vida em sociedade e voltava para o mato viver da caça e, claro, do seu antigo e consagrado sistema de trocas.
Os moradores de Banhados descobriram que ele havia falecido quando depois de tanto tempo as coisas pararam de aparecer e desaparecer, ficando todas nos seus lugares.
FONTES
FILHO, Pedro Haase - Lendas Gaúchas - RBS Publicações - Porto Alegre 2007
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